Pistolas ao bosque

"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta." 1 Coríntios 13:1-7

Num de seus livros, verdadeiros clássicos da literatura mundial, o escritor russo Fiódor Dostoievski, ao narrar a juventude de um de seus personagens, um monge asceta que vive como um santo num mosteiro, nos conta que ele, aos vinte e tantos anos, decidiu chamar o noivo de uma bela jovem que cortejava para um duelo.

O moço nada lhe havia feito e a jovem, espontaneamente e por amor, decidira casar-se com ele, tornando as pretensões do outro impossíveis de realizarem-se.

Agindo com o ego ferido e com orgulho, partira então para um ato extremo: o duelo. Acontece que na madrugada que antecederia a sangrenta disputa, o monge, que ainda não era monge, mudara de ideia e arrependera-se. Ele vai para o duelo, deixa-se balear de raspão no rosto e quando chega a sua vez de atirar, joga a pistola para o bosque e vai encontro do seu opositor para pedir-lhe perdão.

Esse arrependimento muda não apenas a sua vida mas a de um senhor que a tudo observava e que decide então aproximar-se dele para fazer uma terrível confidência: anos antes, havia estrangulado uma jovem senhora porque igualmente fora preterido na hora em que ela decidiu-se por casar com outro.

É que passaram-se os anos e ele conseguira culpar um servo da ex-amante que acaba morrendo de tristeza e levando a culpa pelo assassinato que não cometera.

Ao ver o tremendo gesto de perdão do duelista, este senhor resolve imitá-lo, romper o silêncio e anunciar para toda a sociedade que ele era o verdadeiro matador, mesmo sob o risco, irônico, de ninguém levar sua confidência a sério e ainda acreditá-lo como um louco.

Mas o que isso tem a ver com nossas vidas e com nosso serviço a Cristo? O que esses arrependimentos podem significar, além do fato de termos tido a coragem de afirmar nossas culpas e nossos pecados?

O que o duelista arrependido e seu amigo confidente fazem é abraçar o Amor que Cristo nos oferece. Não importam mais o ego ferido, as humilhações, os sofrimentos. O mais importante torna-se agir de acordo com o Amor que apenas Deus é capaz de nos dar e propiciar.

Assim como os personagens de Dostoievski, em nossa trajetória na terra um dia acabaremos por nos confrontar com essa Verdade. Se queremos fazer parte do Reino de Deus, precisamos ser iguais a Ele e o Amor precisa abundar em nossas vidas.

Jogamos para os bosques as pistolas do ressentimento e da competição, abandonamos as posturas beligerantes em troca da Paz de Cristo. Tudo acaba subordinado a este Amor e ao serviço a Cristo realizado nele e através dele.

Por isso, pedir perdão, perdoar e entregar-se à vontade do Pai tornam-se maravilhas às quais nos submetemos com alegria reverente. Tornamo-nos homens e mulheres modelados de acordo com os parâmetros dados pelo Senhor. É o fim da mentira, do medo e da opressão do pecado.

Nunca é tarde para nos arrependermos e deixar a Verdade triunfar. Trata-se da expressão do Amor do Pai em nossas vidas, na prática. Não em desejo ou meta mas em ação concreta. É chegada a hora de cumprir o Evangelho em nossas vidas e partilhar das maravilhas do Amor de Cristo reservadas para nós antes da fundação do mundo.

"Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor" Efésios 1:4